CARACTERIZAÇÃO DA CIÊNCIA ATUAL
Entrevista concedida ao Jornal Expresso pelo
físico Henvig Schopper
(então diretor do CERN-
acelerador gigantesco de
partículas instalado na Suíça) e publicada em 16.01.1985.
Herwig Schopper - Mais do que estudar
eletrões, fotões e protões, a física das partículas tenta responder à pergunta:
"O que é a matéria?" . Como a matéria é o vetor, a base de todos os
outros fenómenos, de certa forma a física está na base das outras coisas. Mas
não gostaria de dizer que a física pode explicar todas as outras coisas.
Creio que existem três grandes questões: a primeira é "o que é
a matéria?", a segunda, "o que é a vida?" e a terceira "o
que é a consciência". E se a física pode responder à primeira não suponho
que ela possa explicar o que caracteriza a vida ou o pensamento.
Exp. - Falou do pensamento, mas precisamente ai
também existe uma tentativa para o reduzir à bioquímica e para reduzir esta à física. Pensa-se
que, no futuro, se poderá "fazer química" aplicando lasers às
moléculas. Acha que a física poderá vir a ser uma "ciência
dominante", o novo pensamento integrador?
H.S. - Vejo isso de uma forma diferente. Imaginemos a
realidade como um objeto muito complicado, a três dimensões. Para estudar esse
objeto podemos iluminá-lo de diferentes direções, obtendo assim diferentes
projeções desse objeto. As projeções que obtemos são sempre diferentes e por
vezes parece-nos até que elas se contradizem, o que não é necessariamente
verdade.
Exp. - Quais são essas projeções?
H.S. - Uma delas é a ciência, outra a arte, outra a
religião, a moral, e ainda existem outras porque de facto há mais do que três
dimensões. Mesmo dentro da ciência encontramos projeções um pouco diferentes,
como a biologia, a física ou a psicologia. Todas estudam o mesmo objeto, que é
a realidade, mas as projeções que obtemos podem ser completamente diferentes.
Relativamente à religião, inclusive, não é possível que a ciência
entre em contradição com ela porque, se os métodos científicos podemos
investigar uma certa parte da realidade, com outros métodos, como a religião, a
arte ou a estética, podemos investigar outros domínios.
Tudo se resume a isto: saber o que é verdadeiro, conhecer a
verdade.
E aqui a ciência tem algumas limitações. Nós consideramos como
verdadeiro apenas aquilo que se pode repetir, as experiências que são
reprodutíveis, que se podem verificar. Mas há muitas outras coisas que não se
podem repetir, como história por exemplo. Não se pode repetir Napoleão.
No século passado pensou-se que se poderiam explicar todos os
mistérios do mundo com recurso à ciência. Penso que isso não é verdade. A
ciência está limitada pelo seu método e pelos seus instrumentos e não pode
senão investigar uma parte da realidade.
Exp. - Mas é verdade que a ciência aceita hoje, como pontos de
partida para a sua investigação, hipóteses que nada no adquirido científico
poderia levar a postular. Aceitam-se como temas de estudo ideias recolhidas do
imaginário e do mítico, da magia ou da ficção científica. Será que a ciência
pretende no fundo integrar as diversas projeções de que falava?
H.S. - Creio que a ciência faz apenas progressos no
sentido de cobrir uma parte mais importante da realidade. Afirma-se muitas
vezes que "a ciência descobriu" isto ou aquilo e suponho que muita
gente pensa que a ciência trabalha da seguinte forma: a natureza existe, é um
dado, e nós vamos descobrindo parte dela, como se fossemos afastando uma cortina
que cobre uma pintura. Não é tão simples como isso.
PeIo contrário, a ciência é um processo muito mais criativo do que
simplesmente descobrir algo que já existe. A fase mais importante no progresso
da ciência consiste em encontrar novos conceitos. Vou dar um exemplo histórico:
um dos sucessos de Newton consistiu no conceito de fricção, que é uma
abstração. A nossa experiência de todos os dias diz-nos que um objeto em
movimento a que não é aplicada nenhuma força acaba por parar. Newton explicou
que isso só acontecia porque havia uma força que atuava sobre esses objetos, a
fricção, e que se a pudéssemos eliminar, o objeto continuaria a mover-se para
sempre.
O progresso da ciência deve-se ao processo criativo, semelhante à
arte. Formando novos conceitos creio que se pode alargar a parte da realidade
que é acessível à ciência, mas não penso que estejamos a caminhar para a
unificação da ciência, da filosofia, da religião e da arte.
Exp. - E esses novos conceitos representarão de facto uma melhor
compreensão da realidade ou apenas a construção de uma nova realidade? Existem
por exemplo físicos que se interrogam se aquilo que se deteta nos laboratórios
de física das partículas são realmente partículas.
H.S. - Suponho que sempre que construímos uma nova
descrição da realidade nos aproximamos dela, ainda que assimptoticamente. Se
observamos realmente partículas ou não? Sim, pode ser uma questão muito
interessante, mas o problema fundamental não é esse.
A questão fundamental é que até agora tentamos descrever a natureza
em termos dos componentes últimos da matéria e das forças que agem entre eles.
Passamos várias etapas: há 150 anos os químicos pensavam que eram os átomos;
depois surgiu o núcleo e os eletrões, mais tarde vimos que dentro do núcleo
havia protões e neutrões e hoje pensamos que tudo são quarks, leptões e
forças. Mas será que esta desintegração vai continuar para sempre ou
chegaremos a um limite? Penso que chegamos a um limite.
Os quarks são talvez conceitos matemáticos e talvez não tenham nada
a ver com a realidade de uma partícula: nunca se encontrou nenhum quark
"livre". Mas acontece que à medida que descemos na dimensão, notamos
que as partículas se ligam mais umas às outras, cada vez com mais torça e que é
necessária cada vez mais energia para as separar. Será então que podemos falar
de partículas individuais? Penso que nessa altura a ideia de descrever a
natureza com recurso a partículas, pequenos "tijolos" ligados entre
si por pequenas molas, perde o seu sentido.
H.S. - Está a haver grandes revoluções na física. Um dos conceitos que
hoje surge com mais frequência é o de "simetria". Hoje estamos mais
inclinados a aceitar que os princípios fundamentais da Natureza não assentam
nas partículas, mas sim no conceito de simetrias de diversos tipos entre essas
partículas, que é uma coisa muito abstrata. Parece pois que estamos a abandonar
as ideias do Sr. Demócrito, que foi o primeiro a declarar que se deveria
descrever a natureza em termos dos seus mais pequenos elementos constituintes
e estamos a aproximar-nos do Sr. Platão, que disse que a realidade última são
as ideias.
Seria urna mudança radical, uma verdadeira revolução cuja
importância ultrapassaria em muito a esfera da física.
É por isso que acredito que aquilo que fazemos aqui no CERN não é apenas
física mas sim parte da cultura humana.
Exp.- E aí não estamos já em pleno terreno da
filosofia? A física não está a ditar a filosofia?
H.S. - Não diria isso, mas acho que a física
exerce de facto urna grande influência sobre a filosofia. Não a substitui mas
fornece-lhe um forte "input".
Exp. - Concorda que os físicos e os
cientistas em geral gostam de pensar que, no fundo, tudo é simples? A tentativa
de reduzir todas as forças físicas - as forças forte e fraca, a eletromagnética
e a gravitação - a uma única força parece-me um bom exemplo disso.
Porque razão há de haver uma única explicação e porque ela deve ser simples?
Porquê essa fé?
H.S. - É uma questão interessante. Acho que é urna
atração não científica acreditar que tudo deva ser explicado em termos
simples. É uma atitude filosófica e que pode estar errada. Mas é preciso
constatar que até agora tem resultado.
Chamou-lhe fé mas acho que essa crença tem mais a ver com a
estética do que com a religião. Ou terá a ver com a religião no seu sentido
etimológico, algo de estilo: "Se tudo está ligado deve ser possível
explicar tudo recorrendo a um número limitado de explicações" Acho que
sim, que uma parte dos físicos e cientistas acredita nisto.
Exp. - Uma pergunta final a propósito do CERN: a física das
partículas merece alguma contestação, nalguns meios, por se tratar de uma área
de trabalho dispendiosa e que não tem como objetivos a resolução de problemas imediatos
que se colocam hoje no mundo. Trata-se da velha questão da ciência fundamental
"versus" investigação aplicada. A própria Grã-Bretanha pôs a
hipótese de abandonar o CERN devido a dificuldades financeiras. Quais são os
seus argumentos de defesa desta investigação? O que é que o CERN faz?
H.S. - nós ternos vários objetivos aqui no CERN. Um deles é o
fazer ciência de excelência. Estivemos a falar disso durante toda esta
conversa: ciência é parte da cultura da humanidade. O nosso trabalho contribui para
compreendermos melhor qual é a posição do homem no universo.
Mas o CERN
é também um pólo de excelência no desenvolvimento da tecnologia.
Para conceber e construir os aceleradores e os detetores,
precisamos quase sempre de ultrapassar os limites tecnológicos do presente e
isso tem trazido enormes benefícios à indústria - são as próprias empresas que
o afirmam.
Mas ainda há outra coisa: é que a ciência fundamental de hoje é a
tecnologia de manhã. Deixe-me ilustrar isto com um exemplo histórico, que por
vezes dou aos políticos quando me fazem perguntas semelhantes: se um governo,
há 150 anos, tivesse criado uma comissão para definir um programa de
investigação e desenvolvimento para a iluminação, teria certamente
desenvolvido melhores velas, excelentes candeeiros a petróleo, mas nunca se
lembrariam da eletricidade, que era um campo que os meus colegas desse tempo já
estavam a investigar.
Estou profundamente convencido de que o que fazemos hoje irá dar
origem dentro de trinta ou quarenta anos a aplicações totalmente novas que
ainda nem sequer imaginamos, tal como aconteceu com a eletricidade.
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