RENASCIMENTO
A RUTURA DE DESCARTES COM A CULTURA DA ÉPOCA – A DÚVIDA METÓDICA – A
PRIMEIRA EVIDÊNCIA: PENSO LOGO EXISTO – SEGUNDA E TERCEIRA EVIDÊNCIAS - O HOMEM
CARTESINO
Se Galileu é
justamente considerado o fundador da Ciência moderna, cabe a Descartes a
designação de fundador da Filosofia moderna porque criou um sistema que entra
em colisão frontal com a Filosofia aristotélica.
Descartes
(1596-1650) - O século em que Descartes viveu representa a decadência do
espírito renascentista, iniciado há mais de um século, com a influência
marcante das consequências dos descobrimentos. Por toda a Europa havia um
ceticismo resultante do encontro de novas terras, novas culturas e novos
valores bem expresso nos Ensaios de Montaigne e na obra de Francisco Sanches. A
ciência, em virtude do contributo de Galileu, vai-se libertando do domínio da
filosofia e liga-se cada vez mais à técnica.
A rutura de Descartes com a cultura da sua
época - Apesar de educado de acordo com a filosofia escolástica, que se
tornara aristotélica desde o século XIV, Descartes rompe com este modo de
pensar ao escrever o célebre Discurso do Método. Na primeira parte, submete
todos os aspetos da cultura da sua época a uma crítica subtil, mas contundente.
Rejeita o saber livresco renascentista, por ser muito afastado da realidade,
rejeita os ensinamentos da lógica porque não servem para nada, rejeita o estudo
das línguas antigas porque viajar ilustra mais sobre o mundo, rejeita a
teologia porque o seu objeto (Deus) é de tal modo transcendente que o esforço
dos teólogos é inútil. Acerca da filosofia acha que se envolve em tantas
opiniões contraditórias que não garante nada com certeza. Apenas a matemática
lhe aparece bem estruturada, embora não veja nela qualquer utilidade.
Regras do Método
- Descartes adverte que a sua dúvida faz parte de um método cujo objetivo é
atingir a verdade. Nisto, diferencia-se bem da dúvida cética cujo objetivo é a
própria incerteza. O método cartesiano (de Descartes) tem quatro regras,
baseadas na estrutura da matemática, ciência que, como vimos, ele admirava. A
primeira regra é a da evidência: não devemos aceitar nada no nosso pensamento
que não nos apareça tão claro e distinto que não ofereça a menor hipótese de o
pormos em dúvida. Tal evidência não se adquire através dos sentidos, mas apenas
através da intuição. Esta consiste na iluminação interior que afeta o nosso
pensamento. A segunda regra é a da análise e consiste em dividir pensamentos
complexos em pensamentos simples até se tornarem evidentes. A terceira regra é
a da síntese e caracteriza-se pelo caminho inverso da anterior: partimos de
pensamentos simples, interligando-os até formarmos pensamentos complexos. A
quarta regra é a da revisão e consiste numa última verificação dos passos
anteriormente dados para nos precavermos de que o erro não se introduziu
inadvertidamente.
A primeira evidência: penso logo existo -
Uma vez estabelecido o método e percorrido o caminho da dúvida, Descartes
inicia o processo reconstrutivo. Diz ele que não pode ter dúvidas que esteve a
duvidar de todas as coisas. Mas, se duvidou, foi através do seu pensamento. Por
isso, não pode ter dúvida que esteve a pensar: penso. E se tem a certeza que pensa, necessariamente é alguma coisa
que pensa: logo existo. A primeira
certeza de Descartes é então a da sua existência como ser pensante (e não, como
ser corporal). Ora, o pensamento não é fisicamente captável, é de natureza
metafísica. Por isso, a primeira evidência cartesiana é transcendente ao mundo
que observamos! o qual, neste passo, está ainda mergulhado na dúvida radical.
Ainda que continue a ser ilusão e sonho aquilo que os nossos sentidos nos oferecem,
não é de modo algum possível, segundo Descartes, pôr em dúvida a nossa
existência espiritual como seres pensantes. (Advirta-se que esta certeza
cartesiana é válida apenas para quem a possui e por isso é fundamentalmente
subjetiva).
Segunda e terceira evidências -
Descartes sentiu grande dificuldade em sair do isolamento da sua própria
certeza. Fez então o caminho inverso para tentar reconstruir um mundo idêntico
ao que rejeitara, mas solidamente construído. Se esteve a duvidar é porque é um
ser imperfeito pois, se fosse perfeito, teria certezas e não dúvidas. Mas como
é que lhe surgiu a ideia de perfeição sendo ele imperfeito? De si próprio não
pode ter surgido porque não possui a perfeição. Muito menos pode ter surgido do
mundo que o rodeia, pois apresenta-se-lhe igualmente imperfeito. Então,
conclui, só pode ter surgido de quem possui a perfeição, isto é, de Deus, a
segunda evidência. A passagem da ideia de perfeição para a existência do Ser
perfeito = Deus, é justificada porque se o Ser perfeito não existisse
faltava-lhe a perfeição de existir que é, claramente, superior à não
existência. (Não é difícil detetar um sofisma neste argumento).
Garantida a
existência de Deus, Descartes passa a demonstrar a existência do mundo
exterior, tendo sempre presente o critério da evidência. No entanto, tem
dificuldade em justificar a diversidade dos corpos, reduzindo-os à identidade
que lhes advém de serem substância extensa.
O mecanicismo cartesiano - Se todos os
corpos se identificam como substância extensa, como explica Descartes as
diferenças observadas? Apenas pela maior ou menor complexidade da interligação
das diferentes partes. Assim, uma nora para tirar água de um poço é menos
complexa que um moinho de vento ou um tear mecânico. O corpo dos animais é
muito mais complexo que as máquinas construídas pelo Homem. O corpo humano é,
segundo Descartes, a máquina mais complexa que tem, inclusivamente, uma relação
íntima com a alma. Mas não passa de uma máquina. Esta perspetiva origina o
mecanicismo que influenciou muito a corrente de medicina que observa o corpo do
doente sem atender aos seus aspetos psicológicos.
A influência de Descartes - A filosofia
cartesiana representa uma clara rutura com o pensamento da época, ainda sob o
domínio da filosofia aristotélica. A partir de Descartes as marcas da teologia
vão sendo abandonadas e a linha da interioridade, construída na primeira
pessoa, impõe-se aos grandes pensadores.
A filosofia de Descartes deu origem a
um movimento de seguidores que ficaram conhecidos como racionalistas, graças a importância atribuída à razão e ao
menosprezo pelos dados dos sentidos, no processo de conhecimento. As verdades
metafísicas (Deus, alma imortal) tinham a maior evidência e eram a garantia de
todas as verdades. Em oposição ao cartesianismo, surgiu em Inglaterra, um movimento
a que se chamou empirismo (defendia
a maior importância dos sentidos no processo do conhecimento) iniciado por J.
Locke e radicalizado por David Hume. A Filosofia do século XVII foi dominada
por estas duas correntes antagónicas. No século seguinte, o século do
iluminismo, Kant vai criar uma via alternativa, marcando um dos momentos mais
altos da história do pensamento.
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